Deus lhe pague

Por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir
A certidão pra nascer, e a concessão pra sorrir
Por me deixar respirar, por me deixar existir
Deus lhe pague

Pelo prazer de chorar e pelo "estamos aí"
Pela piada no bar e o futebol pra aplaudir
Um crime pra comentar e um samba pra distrair
Deus lhe pague

Por essa praia, essa saia, pelas mulheres daqui
O amor malfeito depressa, fazer a barba e partir
Pelo domingo que é lindo, novela, missa e gibi
Deus lhe pague

Pela cachaça de graça que a gente tem que engolir
Pela fumaça, desgraça, que a gente tem que tossir
Pelos andaimes, pingentes, que a gente tem que cair
Deus lhe pague

Por mais um dia, agonia, pra suportar e assistir
Pelo rangido dos dentes, pela cidade a zunir
E pelo grito demente que nos ajuda a fugir
Deus lhe pague

Pela mulher carpideira pra nos louvar e cuspir
E pelas moscas-bicheiras a nos beijar e cobrir
E pela paz derradeira que enfim vai nos redimir
Deus lhe pague

Chico Buarque/1971

domingo, 22 de julho de 2007 às 15:22 , 0 Comments

O que será (À flor da pele)

O que será que me dá
Que me bole por dentro, será que me dá
Que brota à flor da pele, será que me dá
E que me sobe às faces e me faz corar
E que me salta aos olhos a me atraiçoar
E que me aperta o peito e me faz confessar
O que não tem mais jeito de dissimular
E que nem é direito ninguém recusar
E que me faz mendigo, me faz suplicar
O que não tem medida, nem nunca terá
O que não tem remédio, nem nunca terá
O que não tem receita

O que será que será
Que dá dentro da gente e que não devia
Que desacata a gente, que é revelia
Que é feito uma aguardente que não sacia
Que é feito estar doente de uma folia
Que nem dez mandamentos vão conciliar
Nem todos os ungüentos vão aliviar
Nem todos os quebrantos, toda alquimia
Que nem todos os santos, será que será
O que não tem descanso, nem nunca terá
O que não tem cansaço, nem nunca terá
O que não tem limite

O que será que me dá
Que me queima por dentro, será que me dá
Que me perturba o sono, será que me dá
Que todos os tremores me vêm agitar
Que todos os ardores me vêm atiçar
Que todos os suores me vêm encharcar
Que todos os meus nervos estão a rogar
Que todos os meus órgãos estão a clamar
E uma aflição medonha me faz implorar
O que não tem vergonha, nem nunca terá
O que não tem governo, nem nunca terá
O que não tem juízo

Chico Buarque/1976

às 15:21 , 0 Comments

Segundo andar

Você viu o navio singrar alto mar, revolto sem encosto, porque repleto de resquícios humanos incompletos, para participar, sem andar, da vida rotineira da riqueza, com beleza disfarçada, e propalada pela degradação da escravidão.
Você penetrou o navio vazio de sentimento e calor, porque o tormento da dor com desamor, induz a relegar o ninguém refém, pois interessa a pressa da exclusão pela escravidão.
Você circulou pela massa falida, e se envergonhou da opressão impingida a tanto irmão, que leva o ninguém a sentir-se impotente, e descrente perante a Nação.
Você vê no porão do navio, o vazio de afeto e amor, rumo ao consumo, mas predileto da realeza que, com frieza, condena o ninguém refém da degradação, na ilusão de vantagem da ganância, pela exuberância de aparência com indecência, de vida fútil e inútil de viver.
Você contempla no porão do navio um amontoado “anonimado” de gente decente, pendente de olhar amoroso, mas escabroso, da elite ocupante do andar alarmante de festas e serestas, consumidoras do produto sofrido e à força gerido com desdém pelo ninguém.
Você sentiu desaparecer o alvorecer de vida nova, como prova das forças atuantes e degradantes das injustiças, com premissas de aniquilamento, sem alento, para eliminar do cenário, o calendário que indicasse, e propalasse a hora devida para renascer a vida...
Você imagina que o porão do navio, também rumina os dejetos que o desafeto sagaz, mas eficaz, impingiu a condenação e a desolação do inferno, para desalento materno, muito além das forças do jovem ninguém.
Você galgou escadas internas, sem a prisão das cavernas, porque imaginou o convés do navio, sem calafrio, repleto de afeto concreto da nobreza encantadora, pela aparência esmagadora da ausência da indecência, no trato, sem aparato, do ninguém.
Você viu o ninguém leiloado por um vintém, e com desdém, julgando custo elevado, alguém desfez o negócio, para usufruir o ócio da abundância do sabor da cama, e na lama do desperdício, que o luxo reduz a lixo riqueza e nobreza, oriundas do uso e abuso do ninguém
Você viu o ninguém cambaleante, porque caminhante sem guarida da vida bem vivida, relegado pelo desdém “encantador” e propagador do desprezo sem enredo, oriundo do macabro e imundo conceito de viver sem saber, que além existe Alguém, que ampara sem amarras, o ninguém sem desdém.
Você acompanhou o ninguém refém do deboche, deposto e ocultando o rosto, aparentando bondade, sem maldade, para iludir a platéia incongruente e indecente, aturdida e sem vida, gananciosa por ver e reter o ninguém, para satisfazer a ânsia escabrosa e dolorosa, de esconder e defender as agruras incontidas, através da satisfação do lucro da escravidão....
Você viu o ninguém detento sem alento, caminhar sem andar, ao relento da compaixão, descoberto no deserto do abandono, sem abono da caretice premente e descrente, conduzida pela certeza da vida que acredita na força infinita que ampara, sem amarras, o trato, sem aparato, do ninguém, tornado refém.
Você acredita em linguagem “bendita” que o ninguém é refém da dor e desamor, e que o encantamento do Supremo e Sereno Senhor, contempla o filho dileto, com afeto, de Criador...
Você, então, fomenta e alimenta esperança de alianças potentes e convincentes, que através do encanto possamos encantar os desencantados, impotentes de transcender os desencantos, e ascender montanhas encantadas, almejadas pelo ninguém, refém do medíocre encanto e desencanto do poder.

Antonio Luiz Bianchessi

quinta-feira, 12 de julho de 2007 às 10:08 , 0 Comments

Pátria Minha

A minha pátria é como se não fosse, é íntima
Doçura e vontade de chorar; uma criança dormindo
É minha pátria. Por isso, no exílio
Assistindo dormir meu filho
Choro de saudades de minha pátria.

Se me perguntarem o que é a minha pátria direi:
Não sei. De fato, não sei
Como, por que e quando a minha pátria
Mas sei que a minha pátria é a luz, o sal e a água
Que elaboram e liquefazem a minha mágoa
Em longas lágrimas amargas.

Vontade de beijar os olhos de minha pátria
De niná-la, de passar-lhe a mão pelos cabelos...
Vontade de mudar as cores do vestido (auriverde!) tão feias
De minha pátria, de minha pátria sem sapatos
E sem meias pátria minha
Tão pobrinha!

Porque te amo tanto, pátria minha, eu que não tenho
Pátria, eu semente que nasci do vento
Eu que não vou e não venho, eu que permaneço
Em contato com a dor do tempo, eu elemento
De ligação entre a ação o pensamento
Eu fio invisível no espaço de todo adeus
Eu, o sem Deus!

Tenho-te no entanto em mim como um gemido
De flor; tenho-te como um amor morrido
A quem se jurou; tenho-te como uma fé
Sem dogma; tenho-te em tudo em que não me sinto a jeito
Nesta sala estrangeira com lareira
E sem pé-direito.

Ah, pátria minha, lembra-me uma noite no Maine, Nova Inglaterra
Quando tudo passou a ser infinito e nada terra
E eu vi alfa e beta de Centauro escalarem o monte até o céu
Muitos me surpreenderam parado no campo sem luz
À espera de ver surgir a Cruz do Sul
Que eu sabia, mas amanheceu...

Fonte de mel, bicho triste, pátria minha
Amada, idolatrada, salve, salve!
Que mais doce esperança acorrentada
O não poder dizer-te: aguarda...
Não tardo!

Quero rever-te, pátria minha, e para
Rever-te me esqueci de tudo
Fui cego, estropiado, surdo, mudo
Vi minha humilde morte cara a cara
Rasguei poemas, mulheres, horizontes
Fiquei simples, sem fontes.

Pátria minha... A minha pátria não é florão, nem ostenta
Lábaro não; a minha pátria é desolação
De caminhos, a minha pátria é terra sedenta
E praia branca; a minha pátria é o grande rio secular
Que bebe nuvem, come terra
E urina mar.

Mais do que a mais garrida a minha pátria tem
Uma quentura, um querer bem, um bem
Um libertas quae sera tamem
Que um dia traduzi num exame escrito:
"Liberta que serás também"
E repito!

Ponho no vento o ouvido e escuto a brisa
Que brinca em teus cabelos e te alisa
Pátria minha, e perfuma o teu chão...
Que vontade de adormecer-me
Entre teus doces montes, pátria minha
Atento à fome em tuas entranhas
E ao batuque em teu coração.

Não te direi o nome, pátria minha
Teu nome é pátria amada, é patriazinha
Não rima com mãe gentil
Vives em mim como uma filha, que és
Uma ilha de ternura: a Ilha
Brasil, talvez.

Agora chamarei a amiga cotovia
E pedirei que peça ao rouxinol do dia
Que peça ao sabiá
Para levar-te presto este avigrama:
"Pátria minha, saudades de quem te ama...

Vinicius de Moraes."

às 10:08 , 0 Comments

Pátio alucinado

Os dias passam ligeiros demais para que eu não possa perceber;
As noites são longas e frias para que não possa me esquecer;
Da falta que você me faz,
Da falta que eu sinto de você.

Momentos que são meus, embora não os tenha;
Ínfimos minutos de banho ao sol neste pátio alucinado;
Sinto falta dos meus livros,
Sinto falta do seu cheiro,
Sinto falta dos nossos filhos.

Choques na cabeça já não me fazem esquecer;
Choques na cabeça já não me fazem lembrar;
Dos momentos que nunca tive mesmo sabendo que eles sempre estiveram lá.

Cleber Alemida
28/08/2006

às 10:05 , 0 Comments

De olhos abertos

Caminhando sem destino;
Ao certo de um dia chegar;
Ao longe de um ponto de partida;
Onde sei que você não está.

Vivendo sem futuro;
Com a incerteza do amanhã;
Distante de todos e fugindo de tudo;
Sabemos que não se pode contar.

Sonhando acordado;
Pensando em você;
Deitado na cama de olhos abertos para sentir o cheiro do amanhecer.

Cleber Almeida
26/08/2006

às 10:04 , 0 Comments

Ao menos.

A onde vamos parar ?
Quanto tempo ainda falta antes de chegar ao fim ?
Sem sabores ao menos amores para apaziguar;
Sem promessas nem mesmo premissas para acalentar.

Onde queremos chegar ?
Será que o caminho é longo ?
Sem descanso, sem destino, apenas um caminho tortuoso a nossa frente;
Sem promessas nem mesmo premissas para confortar.

Onde esta estrada vai dar ?
Será que em um quintal dos fundos ?
Será que na entrada social ?
Sem escadas para galgar o próximo andar.

Ao menos ainda podemos andar;
Ao menos ainda temos sonhos;
Ao menos ainda estamos vivos;
Ao menos ainda posso escrever uma carta de amor;
Ao menos ainda posso compor uma linda canção;
Ao menos meus sonhos ninguém pode me tirar;
Ao menos meus pensamentos são livres para voar.

Cleber Almeida
26/08/2006

às 10:02 , 0 Comments

Ao longe

Ao longe, bem distante habitam sonhos, angustias, amores;
Ao longe, bem distante pode estar a chave que abre o baú das respostas de todas as minhas perguntas;
Ao longe, bem distante pode estar o remédio para todas as minhas dores;
Ao longe; bem distante os que hoje me apedrejam estarão a me aplaudir;
Ao longe, bem distante os que hoje me amam podem não estar presentes para me vaiar;
Ao longe, bem distante, nada sei, tudo especulo, nada existe a não ser em meus pensamentos;
Ao longe, bem distante poderemos ser livres, poderemos ser felizes, poderemos ser amores de um romance infantil;
Ao longe, bem distante, quando este dia chegar saberemos se fomos coesos, ou se montamos cenários desvairados baseados nos croquis de nossos sonhos e anseios;
Ao longe, bem distante a cada dia que passa se torna mais perto.

Cleber Almeida
26/08/2006

às 10:01 , 0 Comments

Havia

Havia muito mais do que uma vontade disposta a varrer para todo o sempre pensamentos vãos;
Havia mais do que a salivação na boca do predador, havia mais do que o medo nos olhos da presa;
Havia um instante, um momento, um estampido de pausa no tempo;
Havia a pureza cheia de cicatrizes dos amores inesquecíveis esquecidos;
Todavia som de flautas doces tocadas por bocas amargas;
Entre laços e lençóis, entre a cortina de fumaça e a luz do abajur;
O suor das taças em um canto qualquer ilhado na mancha de vinho sobre o tapete;
E neste instante, neste momento o cheiro da lua é doce.


Cleber – LuGh
17/01/2007

às 09:59 , 0 Comments

Em busca do eixo perdido.

Enquanto isso muitos nem tem pão para caçar o cão e trazer o acento para a barriga dos incapazes;
Enquanto isso muitos podem trazer de conveniências hot-dog’s gigantes, porém aleijados e incapazes de caçar;
A vida é feita de paradoxos, e a incompatibilidade entre corpo e mente, homem e natureza, bicho e gente;
Aos que estão em casa plantados em confortáveis poltronas de espaldar fofo e felpudo, aos que estão nas ruas estacados nos cantos frios em meio aos jornais de ontem;
Todo mundo tem um eixo mesmo que perdido, mesmo que estejamos emoldurados nestas vielas suburbanas, mesmo que sejamos incapazes de trazer proventos, mesmo que plantados nas palmas do tempo, todo mundo tem um eixo;
Estamos fora de esquadro, nossas constelações estão viradas do avesso, onde o tempo é dono de si e de nós, onde barômetros apenas marcam a velocidade dos meus loucos pensamentos;
Mesmo assim continuo minha saga em busca do eixo perdido neste ou em qualquer outro momento.

Cleber Almeida.
LuGH
07/01/2007

às 09:58 , 1 Comment

Molduras

Sabe estes dias onde tudo parece não estar?
Sabe estes dias onde os ponteiros do relógio parecem lutar contra as horas?
Dias que passam sem ao menos pedir licença,
Dias que virão com desculpas amenas,
Horas e mais horas sem ao menos saber que horas são,
Noites mal dormidas como se pegasse fogo no colchão,
Sonhos tão lúcidos quanto os dos internos de um manicômio,
Transeuntes na avenida dando vida em minha arte,
Pois é, vejo minha tela através das molduras de meus anseios e de meus óculos.

Cleber – LuGh
12/10/2006

às 09:56 , 0 Comments